23.3.11
O Trigo e o Joio, a propósito do Desacordo Ortográfico
Assiste-se, no presente, a uma profusa circulação mediática de textos, uns humorísticos outros mais sérios, sobre as alterações ou inovações do controverso Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mais se diria um inoportuno desacordo sobre a grafia do idioma.
Alguns destes textos surgem-nos escritos em português pouco menos que sofrível, outros veiculando notórios equívocos, como o da presunção de que escrever bem consiste em escrever sem erros ortográficos, esquecendo ou ignorando que a ortografia assenta essencialmente em convenção partilhada por certa comunidade, não evidentemente uma convenção qualquer, porque, no domínio linguístico, ela tem de incorporar vários compromissos entre a etimologia e a evolução fonética da língua falada por essa comunidade.
Esta língua comum, primitivamente de mera relação, para fins práticos, vai sendo alterada, adaptada pela comunidade que a fala ao seu modo específico de pensar e de sentir, sob a influência de um largo conjunto de factores desde os geográficos, aos históricos, políticos e culturais que hão-de torná-la, de simples meio de comunicação, em veículo preferido de expressão estético-literária.
A polémica do Acordo Ortográfico, todavia, para além de motivar a produção de textos humorísticos, com frequência falhados, broncos no seu aspecto final, pela falta de inteligência ou de sensibilidade artística dos seus autores, pode e deve também servir para analisar alguns problemas relacionados com o uso e com a aprendizagem do chamado idioma pátrio.
Poderemos começar por dizer que para nós, portugueses e africanos, o Acordo de 1990 tem poucas vantagens, sendo a principal a adopção de uma Ortografia única, i.e., comummente válida em Portugal, no Brasil e, por extensão, em todo o sítio do planeta em que se ensine o Português, acabando com o dilema da escolha de uma das suas duas ortografias oficiais, por parte dos estrangeiros que desejem aprender o nosso idioma.
Mas, juntamente com essa vantagem, traz também o Acordo, no seu bojo, variados e alguns graves inconvenientes, que reduzem ou mesmo anulam aquela aludida vantagem.
Custa a crer que tal Acordo tenha sido patrocinado, entre nós, pelo Prof. Malaca Casteleiro, cuja competência em matéria linguística quase todos lhe reconhecem.
É, na sua essência, por muito que a crítica desagrade ao Prof. Malaca, uma vincada aproximação da ortografia portuguesa à versão que vigora no Brasil desde 1943, no que não pode deixar de considerar-se uma clara cedência política e cultural de Portugal em relação ao Brasil.
Convém, a propósito, recordar que Portugal se tem regido pela Ortografia aprovada conjuntamente com o Brasil em 1945, segundo o Acordo então firmado, que o Brasil inicialmente homologou e depois revogou, na sequência de enorme celeuma levantada, no seu Senado, em que, à mistura com o Acordo, segundo consta o anedotário, os distintos Senadores brasileiros consumiram largo tempo a discutir os malefícios da colonização lusitana e o ouro levado do Brasil, no tempo de D. João V, etc e tal, como invariavelmente acontece nas acesas discussões linguísticas entre os nossos putativos irmãos de fala.
A maior justificação que os brasileiros então apresentaram para a rejeição do Acordo de 1945 foi que ele, apesar de conjuntamente elaborado e formalmente assinado pelos membros da sua Comissão Técnica, enfermava de doutrina linguística claramente pró-portuguesa, tendo-se os membros brasileiros da Comissão Técnica deixado levar pelos argumentos da outra parte, talvez por serem dotados de espírito ou sentimentos demasiado lusófilos, coisa, por alegre tradição, sempre vista com reserva ou suspeição, em terras de Vera Cruz. Daí que tivessem dado o dito por não dito e voltado com a palavra atrás.
Ficaram apegados, entre outras preciosidades, ao seu querido trema, grafando, p. ex., tranquilo, com os dois pontinhos em cima do u, para assinalar a pronunciação daquela vogal.
No mais, trocaram os acentos agudos, por «chapéus» (económico por econômico, por ex.), em obediência à pronúncia deles, argumento que desvalorizo em extremo, e eliminaram as chamadas consoantes mudas, o que para eles não traria consequências na forma de falar, já que, por regra, abrem todas as vogais e distinguem todas as sílabas, tónicas e átonas, na sua peculiar forma de falar, na verdade, mais clara que a nossa, reconheça-se.
Para nós, haverá o perigo de ainda maior fechamento da nossa oralidade, visto que, na maioria dos casos, o c e o p escritos, mas não pronunciados, lembram a necessidade de abrir as respectivas vogais que os antecedem, como em projecto, que, em Portugal, adoptando-se a nova ortografia, facilmente passará a ser pronunciado projêto e optimismo, que tenderá a ôtimismo, na fala, tornando o português europeu e africano, mas sobretudo o europeu, cada vez menos perceptível ao ouvido estrangeiro.
Há ainda outras incongruências, como, por ex., o que acontecerá com o vocábulo recepção, que em Portugal, uma vez que o p não se pronuncia, passará a ser escrito receção, com risco visível de passar a ser pronunciado de forma igual a recessão, embora no Brasil, que pronuncia o p, ele continue a escrever-se recepção, veja-se o absurdo, que se repete noutras situações, como no caso do Egipto/Egito, que, não obstante, conserva o p no gentílico, egípcio.
Enfim, a pretensão de subordinar a escrita à oralidade, alegadamente para facilitar a aprendizagem da Língua, sempre me pareceu fraco argumento, porque, a ser seguido com rigor, conduziria a adoptar tantas ortografias quantas as particulares pronúncias de cada região : uma minhota, outra transmontana, outra beirã, outra alentejana, outra algarvia, outra madeirense, outra açoriana, etc., etc., etc., para só mencionar a variação existente no pequeno espaço geográfico em que Portugal se formou.
Para a coesão do idioma, mais importante do que a ortografia é a sintaxe, em que a divergência luso-brasileira não pára de se alargar, principalmente por violação sistemática das regras gramaticais do Português, na boca da população brasileira.
Tenha-se em atenção que a nomenclatura gramatical brasileira regista diferenças insignificantes da nossa, obrigando, por isso, os brasileiros a ensinarem e a aprenderem bem o idioma, sem admissão de erros sintácticos clamorosos, como os ouvidos nas Telenovelas : « Você já falou com teu Pai ? » ou « Eu vou lhe ver no cinema e depois te explico » e outras lindezas do género.
Poderia continuar, mas tornar-se-ia demorada a dissertação, bastando para o efeito, julgo, os exemplos apontados.
Em suma, a sua aplicação em Portugal, não será certamente o fim do Mundo, mas poderíamos ter alcançado um Acordo melhor ou um Acordo autêntico, em lugar deste demasiado incongruente Acordo, que mais parece promover um abrasileiramento da ortografia usada por Portugueses e Africanos, sendo de realçar que estes últimos têm seguido a Norma Portuguesa e não mostram nenhum entusiasmo com a pretendida mudança.
Cumpre ainda relembrar que o próprio Acordo de 1990 impunha, para a sua entrada em vigor, a elaboração de um Vocabulário Ordinário comum, bem como outro de termos técnicos especializados, onomásticos, topónimos, etc., coisas que não existem ainda, nem sequer em preparação, continuando cada país a forjar os seus vocabulários.
Por tudo isto, mereceria a pena tentar fazer um verdadeiro Acordo Linguístico, sem manias de autoridades prevalecentes, escudadas na História ou no número de falantes.
Parece faltar ousadia para tanto, por rarearem figuras de sólido prestígio nesta área, não só pelo conhecimento, como pela obra produzida, em geral escassa, mesmo quando valiosa.
Em 1945, do lado português, pelo menos, estávamos muito mais fortes, em nomes e em obras, a começar pela figura do coordenador da nossa representação, o Prof. Francisco Rebelo Gonçalves, Catedrático de alto prestígio em Portugal e no Brasil, onde também leccionara, senhor de vasta obra no campo da Filologia.
Cabe ainda dizer que, se os Portugueses não aderirem ao presente Acordo, não farão nada diverso do que fizeram os Brasileiros em relação ao de 1945.
AV_Lisboa, 20 de Março de 2011
Comments:
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"se os Portugueses não aderirem ao presente Acordo, não farão nada diverso do que fizeram os Brasileiros em relação ao de 1945".
Exactamente ! É isso que estou a fazer : ignorar o Aborto Ortográfico.
Além disso, é importante repudiar os jornais e televisões que o adoptem. Já fiz ísso com o semanário Expresso, quer na edição em papel quer na edição electrónica.
Os noticiários da RTP não vejo. E se os outros canais aderirem ao Aborto, não há problema : há os canais em inglês.
Exactamente ! É isso que estou a fazer : ignorar o Aborto Ortográfico.
Além disso, é importante repudiar os jornais e televisões que o adoptem. Já fiz ísso com o semanário Expresso, quer na edição em papel quer na edição electrónica.
Os noticiários da RTP não vejo. E se os outros canais aderirem ao Aborto, não há problema : há os canais em inglês.
«para nós, portugueses e africanos, o Acordo de 1990 tem poucas vantagens, sendo a principal a adopção de uma Ortografia única, i.e., comummente válida em Portugal, no Brasil e, por extensão, em todo o sítio do planeta em que se ensine o Português.»
Com o devido respeito, devo dizer que discordo em toda a linha.
Essa "Ortografia única" é composta por mais de 68.000 duplas grafias, algumas das quais (como aliás refere no seu texto) surgem em consequência do próprio "acordo" que as pretendia "eliminar". Sendo a maior parte destas 68.000 duplas grafias constituída por "lemas", haveria então que multiplicar esse número, já de si astronómico, por todas as respectivas "derivações" (flexões de tempo e modo nos verbos, por exemplo, palavras compostas ou justapostas, etc.) para que finalmente se pudesse aquilatar de como na prática - mesmo sem considerar as questões sintácticas ou as lexicais - essa "uniformidade" é uma completa falácia dos "acordistas".
Se apontarmos para um número à volta das 250.000 entradas lexicais dicionarizáveis (comummente), estamos a falar da absoluta impraticabilidade dessa tal "uniformidade". Resta apurar - o que se fará, certamente - se as diferenças com o AO90 serão ainda mais (e maiores) do que antes do mesmo AO90 que teoricamente serviria para as "abolir".
Com o devido respeito, devo dizer que discordo em toda a linha.
Essa "Ortografia única" é composta por mais de 68.000 duplas grafias, algumas das quais (como aliás refere no seu texto) surgem em consequência do próprio "acordo" que as pretendia "eliminar". Sendo a maior parte destas 68.000 duplas grafias constituída por "lemas", haveria então que multiplicar esse número, já de si astronómico, por todas as respectivas "derivações" (flexões de tempo e modo nos verbos, por exemplo, palavras compostas ou justapostas, etc.) para que finalmente se pudesse aquilatar de como na prática - mesmo sem considerar as questões sintácticas ou as lexicais - essa "uniformidade" é uma completa falácia dos "acordistas".
Se apontarmos para um número à volta das 250.000 entradas lexicais dicionarizáveis (comummente), estamos a falar da absoluta impraticabilidade dessa tal "uniformidade". Resta apurar - o que se fará, certamente - se as diferenças com o AO90 serão ainda mais (e maiores) do que antes do mesmo AO90 que teoricamente serviria para as "abolir".
Caro amigo
Concordo inteiramente consigo mas, falando mal e depressa, "estou-me nas tintas". Já tenho 71 anos e sei que não vou conseguir mudar uma ortografia que aprendi nos bancos da escola primária. É como se agora fosse obrigado a conduzir pela esquerda.
Mesmo que venha a publicar mais alguns dos meus escritos, não me darei ao trabalho de alterar a grafia. Se o fizesse, deixaria de ser eu próprio. Faz parte da minha imagem, tal como o monóculo de Spínola...
Concordo inteiramente consigo mas, falando mal e depressa, "estou-me nas tintas". Já tenho 71 anos e sei que não vou conseguir mudar uma ortografia que aprendi nos bancos da escola primária. É como se agora fosse obrigado a conduzir pela esquerda.
Mesmo que venha a publicar mais alguns dos meus escritos, não me darei ao trabalho de alterar a grafia. Se o fizesse, deixaria de ser eu próprio. Faz parte da minha imagem, tal como o monóculo de Spínola...
Quer ver com o tudo é relativo? O meu amigo fica chocado ao ouvir «Você já falou com teu pai?» nas telenovelas e tem toda a razão. Mas já reparou que nós portugueses também damos calinadas de idêntico calibre. E, pior do que isso, nem temos noção de que as damos. E, ainda pior, até os mais altos magistrados da Nação as dão, com o maior à-vontade. Quer um exemplo recente? Em Março, num discurso, o Prof. Cavaco Silva afirmou e foi abundantemente citado pela imprensa: «Façam ouvir a vossa voz» (na TVI: http://goo.gl/ut8yv). Já viu que o PR deveria ter dito «Fazei ouvir a vossa voz» ou «Façam ouvir a sua voz»? O que ele disse está gramaticalmente incorrecto, mas ninguém reparou. Nem ele, nem – aparentemente – ninguém. Mas como foi o PR de Portugal e não um brasuca qualquer a dizê-lo, nós fechamos os olhos...
Caro Leitor Manuel de Sousa,
Agradeço o seu comentário, que me suscita a seguinte resposta :
Este erro de concordância que apontou, generalizado no Português europeu, está, há muito, identificado, denunciado e combatido por Filólogos, Linguistas, Gramáticos e demais Especialistas da LP, portugueses e brasileiros, bem como por escritores consagrados do idioma, independentemente da sua nacionalidade.
Infelizmente, sem êxito, porque o erro se difundiu de tal forma que a maioria dos falantes do Português europeu já nem dele se apercebe, equivocando-se por completo, mesmo quando dele advertidos.
Julgo que os Professores deixaram de o assinalar ou contemporizam com a sua prática. Tudo isto, porém, não serve para absolver os frequentes abusos de linguagem presentes no modo de falar brasileiro, que tendem a surdir na linguagem popular portuguesa, por falta de atenção de Professores, encarregados de educação e utilizadores profissionais do idioma, como Jornalistas e Locutores de Rádio e TV.
Acrescentamos, assim, erros novos alheios aos nossos já mais antigos, quando os devemos a todos combater, em nome da preservação da índole do idioma.
Neste domínio, não devemos admitir equivalências ou equiparações nos múltiplos erros, dislates e solecismos cometidos contra o idioma, sob pena de não estancarmos a onda de corrupção que ameaça «a nossa portuguesa casta linguagem».
Daí que, por termos dificuldade em eliminar os nossos velhos vícios de linguagem, não sejamos obrigados a tolerar os alheios, no caso, os dos Brasileiros, pelo menos, enquanto eles se honrarem em falar a Língua Portuguesa.
Saudações Cordiais, sempre em favor da Língua de Camões.
Agradeço o seu comentário, que me suscita a seguinte resposta :
Este erro de concordância que apontou, generalizado no Português europeu, está, há muito, identificado, denunciado e combatido por Filólogos, Linguistas, Gramáticos e demais Especialistas da LP, portugueses e brasileiros, bem como por escritores consagrados do idioma, independentemente da sua nacionalidade.
Infelizmente, sem êxito, porque o erro se difundiu de tal forma que a maioria dos falantes do Português europeu já nem dele se apercebe, equivocando-se por completo, mesmo quando dele advertidos.
Julgo que os Professores deixaram de o assinalar ou contemporizam com a sua prática. Tudo isto, porém, não serve para absolver os frequentes abusos de linguagem presentes no modo de falar brasileiro, que tendem a surdir na linguagem popular portuguesa, por falta de atenção de Professores, encarregados de educação e utilizadores profissionais do idioma, como Jornalistas e Locutores de Rádio e TV.
Acrescentamos, assim, erros novos alheios aos nossos já mais antigos, quando os devemos a todos combater, em nome da preservação da índole do idioma.
Neste domínio, não devemos admitir equivalências ou equiparações nos múltiplos erros, dislates e solecismos cometidos contra o idioma, sob pena de não estancarmos a onda de corrupção que ameaça «a nossa portuguesa casta linguagem».
Daí que, por termos dificuldade em eliminar os nossos velhos vícios de linguagem, não sejamos obrigados a tolerar os alheios, no caso, os dos Brasileiros, pelo menos, enquanto eles se honrarem em falar a Língua Portuguesa.
Saudações Cordiais, sempre em favor da Língua de Camões.
Meu caro, compreendo o que diz. Apenas chamei a atenção para o facto de, no caso presente, ter ficado a impressão de que estava a ter dois pesos e duas medidas. O erro brasileiro é próprio das camadas populares e é sistematicamente combatido por todos os filólogos, linguistas, gramáticos e demais especialistas da língua no Brasil. Já quanto ao erro português «os Professores deixaram de o assinalar ou contemporizam com a sua prática», como você muito bem diz. Acho que antes de criticarmos os outros, temos que pensar no que nós próprios, no nosso país, podemos fazer para melhorar a Língua de Camões. Saudações lusófonas.
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